Pérolas de Sabedoria

segunda-feira, dezembro 06, 2010

COM O CORAÇÃO

Hoje eu não quero conversas programadas. Diálogos impecavelmente arrumados que não deixam o coração à mostra. As palavras podem sair de casa sem maquilhagem. Podem surgir com os cabelos desalinhados, livres de roupas que as apertem, como se tivessem acabado de acordar. Dispensa-se tons académicos, defesas de tese, regras para impressionar o interlocutor. O único requinte deve ser o sentimento. É desnecessário tentar entender qualquer coisa. Tentar solucionar qualquer problema. Buscar salvamento para o quer que seja.

Hoje eu não quero falar sobre o quanto o mundo está doente. Sobre como está difícil a gente viver. Sobre as milhares de coisas que causam cancro. Sobre as previsões de catástrofes que vão dizimar a humanidade. Sobre o quanto o ser humano pode ser também perverso, corrupto, tirano e outras feiuras. Sobre os detalhes das acções violentas noticiadas nos jornais. Não quero o blablablá encharcado de negatividade que grande parte das vezes não faz outra coisa além de nos encher de mais medo. Não quero falar sobre a hipocrisia que prevalece, sob vários disfarces, em tantos lugares. Hoje, não. Hoje, não dá. Não me interessam o disse-que-disse, os julgamentos, a investigação psicológica da vida alheia, as opiniões sobre as motivações que fazem as pessoas agirem assim ou assado, o dedo na ferida.

Hoje eu não quero aquelas conversas contraídas pelo receio de não se ter assunto. A aflição de não se saber o que fazer se ele, de repente, acabar. O esforço de se falar qualquer coisa para que a nossa quietude não seja interpretada como indiferença. Hoje eu não quero aquelas conversas que muitas vezes acontecem somente para preenchermos o tempo. Para tentarmos calar a boca do silêncio. Para fugirmos da ameaça de entrar em contacto com um monte de coisas que o nosso coração tem pra dizer. Além do necessário, hoje não quero falar só por falar nem ouvir só por ouvir. Que a fala e a escuta possam ser um encontro. Um passeio que se faz junto. Um tempo em que uma vida se mostra para a outra, com total relaxamento, sem se preocupar se aquilo que é mostrado agrada ou não. Se aumenta ou diminui os índices de audiência.

Hoje, se quiseres, se puderes, se souberes, fala.me de ti. Fala-me dos teus amores, tanto faz se estão perto do teu corpo ou somente no teu coração. Fala-me sobre as coisas que te costumam fazer sintonizar a frequência do teu sorriso mais bonito. Fala-me sobre os sonhos que mantêm o frescor, por mais antigos que sejam. Fala-me do pedaço de doçura que não foi maculado. Da porção amorosa que saiu ilesa à própria indelicadeza e à alheia. A partir daquilo em ti que continuou a acreditar na ternura, a se encantar e a se desprevenir, apesar de tantos apesares. Conta-me sobre as receitas que te dão água na boca. Sobre o que gostas de fazer para te divertires. Conta-me se rezas antes de adormecer.

Hoje, fala-me de ti. Dos momentos em que a vida te doeu tanto que achaste que não irias aguentar. Fala-me das músicas que compõem a tua banda sonora. Dos poemas que poderias ter escrito, de tanto que traduzem a tua alma. Senta-te perto de mim e mesmo que estejamos rodeados por buzinas, gente apressada, perigos iminentes, faz de conta que a gente está conversando no quintal de casa, descascando uma laranja, os pés descalços, sem nenhum compromisso chato à nossa espera. A gente já brincou tanto de faz-de-conta quando era criança, onde foi que a gente esqueceu como se chega a esse lugar de inocência? Fala-me da lua que admiraste uma noite destas, no céu. Da borboleta que te chamou à atenção por tanta beleza, abraçada a alguma flor, como se existisse apenas aquele abraço. Diz-me se quando acordas ainda ouves passarinhos, mesmo que não possas identificar de onde vem o canto. Diz-me se a tua mãe ou o teu pai cantavam para te fazer dormir.

Senta-te perto e conta-me o que sentiste quando viste o mar pela primeira vez e o que sentes quando olhas para ele, tantas vezes depois. Se tinha jardim na casa da tua infância, diz-me que flores haviam por lá. Conta-me há quanto tempo não vês uma joaninha. Se tinhas algum apelido na escola. Se consegues imaginar-te bem velhinho. Fala-me da tua família, a de origem ou a que se formou. Das pessoas que não têm o teu sobrenome, mas são familiares para a tua alma. Fala-me de quem passou pela tua vida e nem sabe o quanto foi importante. Daqueles que sabem e tu nem consegues dizer o tamanho que têm de verdade. Fala-me daquele animal de estimação que se deitava junto aos teus pés, solidário, quando estavas triste. Diz o que vai ser bom encontrar quando, bem lá na frente, olhares para o caminho que fizeste no mundo, em retrospectiva.
Podemos deitar conversa fora, desde que seja temperada com riso, esse tempero que faz tanto bem. A gente pode rir dos tombos que deste na rua e daqueles que levaste na vida, dos quais a gente somente consegue rir muito tempo depois, quando consegue. A gente pode rir das tuas maluquices românticas. Das maiores encrencas que já arranjaste. Das ciladas que armaram para ti e, antes de entenderes que eram ciladas, chegaste até a agradecer por elas. De quando descobriste como são feitos os bebés. A gente pode rir das mentiras que contaste e acreditaram com facilidade. Das verdades que disseste e ninguém levou a sério.
Não é preciso ter pauta, seguir roteiro, deixemos a conversa acontecer de improviso, uma lembrança puxando a outra pela mão, mas conta-me e deixa-me contar-te de mim. Dessas coisas. De outras parecidas. Ouve também com os olhos. Escuta o que eu digo quando nem digo nada: a boca é o que menos fala no corpo. Não antecipes as minhas palavras. Não te impacientes com o meu tempo de dizer. Não me perguntes coisas que vão fazer a minha mão se mexer toda para responder. Uma conversa sem vaidade, ninguém quer saber qual história é a mais feliz ou a mais desditosa.

Hoje eu quero conversar com um amigo para falar também sobre as coisas boas da vida. As miudezas dela. A grandeza dela. A roda-gigante que ela é, mesmo quando a gente vive como se estivesse convencido de que ela é um trem-fantasma o tempo inteiro. Um amigo para falar de coisas sensíveis. Do quanto o ser humano pode ser também bondoso, honesto, afectuoso, divertido e outras belezas. Dos lugares onde nossos olhos já pousaram e daqueles onde pousam agora. Um amigo para conversar horas adentro, com leveza, de coisas muito simples, como a gente já fez várias vezes e parece ter desaprendido como se faz. Um amigo para se conversar com o coração.
E se não quisermos, não pudermos, não soubermos, com palavras, nos dizer um pouco um para o outro, senta-te ao meu lado assim mesmo. Deixa os nossos olhos se encontrarem uma vez ou outra até nascer aquele sorriso bom que acontece quando a vida da gente se sente olhada com amor. Senta-te apenas ao meu lado e deixa o meu silêncio conversar com o teu. Às vezes, a gente nem precisa mesmo de palavras.